1.0 Introdução aos Estudos Transversais
Na epidemiologia, o campo dos estudos observacionais é a base sobre a qual construímos grande parte do nosso conhecimento sobre a distribuição e os determinantes das doenças nas populações. Dentre os diversos delineamentos disponíveis, o estudo transversal se destaca como uma ferramenta essencial e frequentemente utilizada. Nesta apostila, exploraremos sua estrutura, seus objetivos e suas limitações, um passo fundamental para qualquer pesquisador ou profissional da saúde que deseje investigar a situação de saúde de uma comunidade, gerar hipóteses ou subsidiar o planejamento de políticas públicas.
1.2 Definição e Conceito Central
Um estudo transversal (ou cross-sectional study) pode ser definido como um delineamento de pesquisa observacional no qual a exposição e o desfecho (doença ou condição de saúde) são medidos simultaneamente nos indivíduos de uma população em um único ponto no tempo. A melhor analogia para compreender seu conceito é pensar nele como uma fotografia ou um retrato instantâneo da população. Ele não acompanha os indivíduos ao longo do tempo, mas captura um momento específico, permitindo avaliar a prevalência de uma condição e de seus possíveis fatores associados.
O objetivo central de um estudo transversal é, portanto, medir a prevalência — a proporção de indivíduos em uma população que apresenta uma determinada doença ou característica em um momento específico.
1.3 Objetivos Principais
Os estudos transversais são conduzidos com diversos propósitos na pesquisa em saúde. Seus objetivos primários incluem:
- Descrever a distribuição de variáveis de saúde em uma população: Identificar a frequência de certas características, como idade, sexo, hábitos de vida e condições socioeconômicas, e como elas se distribuem na comunidade estudada.
- Estimar a prevalência de doenças, agravos ou fatores de risco: São a principal ferramenta para responder a perguntas como “Qual a proporção de adultos hipertensos em uma cidade?” ou “Qual a prevalência de sedentarismo entre adolescentes?”.
- Gerar hipóteses etiológicas: Embora não possam estabelecer uma relação de causa e efeito, os estudos transversais podem identificar associações estatísticas entre exposições e desfechos que servem de base para a formulação de hipóteses a serem testadas em estudos analíticos mais robustos, como os de coorte ou caso-controle.
- Subsidiar o planejamento em saúde e a alocação de recursos: Os dados de prevalência são cruciais para gestores de saúde, pois informam sobre a magnitude dos problemas de saúde em uma comunidade, auxiliando na definição de prioridades, no planejamento de serviços e na alocação de recursos.
1.4 Contexto Histórico e Relevância
A evolução do pensamento epidemiológico é marcada por investigações clássicas, como os estudos de John Snow sobre a epidemia de cólera em Londres, que são exemplos primorosos do raciocínio causal. No entanto, ao longo do século XX, com a transição epidemiológica e o aumento da carga de doenças crônicas, os estudos transversais se consolidaram como a principal ferramenta para a realização de inquéritos populacionais de base. Eles se tornaram a espinha dorsal da vigilância de doenças crônicas e de seus fatores de risco, permitindo monitorar tendências e avaliar o impacto de intervenções em larga escala.
Para garantir que a “fotografia” tirada por um estudo transversal seja nítida e represente a realidade com fidedignidade, é indispensável um aprofundamento nos detalhes metodológicos que garantem a validade e a confiabilidade de seus resultados.
2.0 Características Metodológicas
O rigor metodológico é fundamental para a validade e a confiabilidade de um estudo transversal. Um delineamento bem planejado e executado minimiza a ocorrência de erros sistemáticos (vieses) e aumenta a confiança nas conclusões. Esta seção detalhará as etapas essenciais do seu planejamento e execução, desde a seleção da amostra até a análise dos dados.
2.2 Desenho do Estudo e População-Alvo
O primeiro passo é a definição clara da população-alvo (ou população de referência), que é o grupo maior de indivíduos ao qual se deseja generalizar os resultados do estudo (ex: todos os idosos do Brasil). Como geralmente é inviável estudar toda a população-alvo, seleciona-se uma população de estudo, que é a amostra de indivíduos que efetivamente participarão da pesquisa.
A validade dos resultados depende criticamente de quão bem essa amostra representa a população-alvo. Para garantir isso, é fundamental estabelecer critérios de inclusão e exclusão claros e objetivos.
- Critérios de Inclusão: Características que os indivíduos devem possuir para serem elegíveis para o estudo (ex: residir em determinada área, pertencer a uma faixa etária específica).
- Critérios de Exclusão: Condições que impedem um indivíduo elegível de participar (ex: incapacidade de responder a um questionário, presença de uma condição que possa confundir os resultados).
2.3 Técnicas de Amostragem
A seleção da amostra pode ser feita por métodos probabilísticos (onde cada indivíduo da população-alvo tem uma probabilidade conhecida e diferente de zero de ser selecionado) ou não probabilísticos. Os métodos probabilísticos são preferíveis, pois permitem a generalização dos resultados para a população-alvo.
Nota da Professora: Lembrem-se, na prática, a teoria encontra desafios. Obter uma lista completa de todos os indivíduos da população-alvo para realizar uma amostragem aleatória simples é, muitas vezes, inviável ou proibitivamente caro. Por isso, técnicas como a amostragem por conglomerados são tão comuns em inquéritos de saúde de base populacional. Pesquisadores frequentemente precisam combinar métodos e fazer concessões, mas o fundamental é que essas decisões sejam transparentes e suas implicações para a generalização dos resultados sejam discutidas abertamente nas limitações do estudo.
| Quadro 2.1 – Métodos de Amostragem em Estudos Transversais | Descrição |
| Amostragem Aleatória Simples | Cada indivíduo da população-alvo tem a mesma chance de ser selecionado. Requer uma lista completa de todos os membros da população. |
| Amostragem Sistemática | Os indivíduos são selecionados a partir de uma lista ordenada, utilizando um intervalo fixo (ex: selecionar a cada 10ª pessoa da lista). |
| Amostragem Estratificada | A população é dividida em subgrupos homogêneos (estratos), como sexo ou faixa etária. Em seguida, uma amostragem aleatória é realizada dentro de cada estrato. Garante a representatividade de subgrupos importantes. |
| Amostragem por Conglomerados | A população é dividida em grupos heterogêneos (conglomerados), como bairros ou escolas. Sorteiam-se alguns conglomerados e todos os indivíduos dentro deles são investigados. É útil quando não há uma lista completa da população. |
| Amostragem de Conveniência/Por Quotas | Métodos não probabilísticos. Na amostragem por conveniência, selecionam-se os indivíduos mais acessíveis. Na amostragem por quotas, busca-se preencher um número pré-definido de indivíduos com certas características (ex: 50 homens e 50 mulheres), mas a seleção não é aleatória. A generalização dos resultados é limitada. |
2.4 Coleta de Dados
Os dados em estudos transversais podem ser coletados por diversos métodos, como:
- Questionários (autoaplicáveis ou aplicados por entrevistador)
- Entrevistas (presenciais ou por telefone)
- Revisão de prontuários médicos
- Exames físicos e testes laboratoriais
Independentemente do método, a padronização dos procedimentos de coleta e o treinamento rigoroso da equipe de campo são essenciais para minimizar o viés de aferição (erros na medição das variáveis), garantindo que os dados sejam coletados de forma consistente e precisa para todos os participantes.
2.5 Variáveis em Estudo
Em um estudo transversal com objetivo analítico, as variáveis são classificadas em três tipos principais:
- Variável de Desfecho (Dependente): A doença, o agravo ou a condição de saúde que é o foco da investigação. Exemplo: presença ou ausência de hipertensão arterial.
- Variável de Exposição (Independente): O fator de risco ou a característica cuja associação com o desfecho se deseja investigar. Exemplo: prática de atividade física (sim/não) ou nível de sedentarismo.
- Variáveis de Confundimento: Fatores que estão associados tanto à exposição quanto ao desfecho e que podem distorcer ou “confundir” a associação principal. Se não forem controlados, podem levar a conclusões errôneas. Exemplo: a idade, que está associada tanto ao sedentarismo quanto à hipertensão.
2.6 Análise Estatística
A análise de dados de um estudo transversal geralmente segue uma sequência lógica.
- Estatística Descritiva: A análise inicial consiste em descrever as características da amostra.
- Para variáveis categóricas (sexo, escolaridade), utilizam-se medidas de frequência (absoluta e relativa/percentual).
- Para variáveis contínuas (idade, pressão arterial), empregam-se medidas de tendência central (média, mediana) e de dispersão (desvio padrão, intervalo interquartil).
- Medidas de Associação: Para quantificar a relação entre a exposição e o desfecho, a principal medida é a:
- Razão de Prevalência (RP): Calculada pela divisão da prevalência do desfecho no grupo exposto pela prevalência do desfecho no grupo não exposto.
- Interpretação: Uma RP > 1 indica que a prevalência do desfecho é maior entre os expostos (associação positiva); uma RP < 1 sugere que a exposição é um fator de proteção; uma RP = 1 indica ausência de associação.
- Odds Ratio (OR): Embora seja a medida de associação primária dos estudos de caso-controle, o OR é frequentemente calculado em estudos transversais. Ele pode ser uma boa estimativa da Razão de Prevalência quando a prevalência do desfecho na população é baixa (geralmente <10%).
- Razão de Prevalência (RP): Calculada pela divisão da prevalência do desfecho no grupo exposto pela prevalência do desfecho no grupo não exposto.
- Testes de Hipóteses: Para avaliar se a associação observada na amostra é estatisticamente significante (ou seja, se é improvável que tenha ocorrido por mero acaso), utilizam-se testes como:
- Teste Qui-quadrado (χ²): Para avaliar a associação entre duas variáveis categóricas.
- Teste t de Student: Para comparar as médias de uma variável contínua entre dois grupos.
- Modelagem Multivariada: Para controlar o efeito das variáveis de confundimento, empregam-se modelos de regressão. O mais comum para desfechos binários (doente/não doente) é a regressão logística. A regressão logística é particularmente poderosa, pois não só estima a medida de associação (o Odds Ratio) ajustada para múltiplos confundidores simultaneamente, mas também permite avaliar o papel de cada variável no modelo, oferecendo uma visão mais nuançada das inter-relações.
O domínio desta arquitetura metodológica não é um mero exercício acadêmico; é o que nos permite desmontar criticamente um estudo, identificar suas fragilidades e, como veremos a seguir, pesar realisticamente o valor de suas conclusões.
3.0 Vantagens e Limitações
3.1 Ponderando Prós e Contras
A escolha de um delineamento de estudo deve ser uma decisão criteriosa, baseada na pergunta de pesquisa, nos recursos disponíveis e no tempo. Nenhum desenho é perfeito para todas as situações. Os estudos transversais, em particular, oferecem uma combinação única de prós e contras que os tornam adequados para certos objetivos, mas limitados para outros. Compreender essa balança é fundamental para a prática epidemiológica.
3.2 Análise Comparativa dos Desenhos de Estudo
A tabela a seguir compara as principais características do estudo transversal com outros dois delineamentos observacionais analíticos clássicos: o estudo de coorte e o estudo caso-controle.
| Característica | Estudo Transversal | Estudo de Coorte | Estudo Caso-Controle |
| Momento da Coleta | Simultâneo (Exposição e Desfecho no mesmo momento) | Longitudinal/Prospectivo (Exposição -> Desfecho) | Retrospectivo (Desfecho -> Exposição) |
| Principal Medida de Frequência | Prevalência | Incidência | Não aplicável |
| Principal Medida de Associação | Razão de Prevalência (RP) / Odds Ratio (OR) | Risco Relativo (RR) | Odds Ratio (OR) |
| Relação Temporal (Causalidade) | Não estabelece (ambiguidade temporal) | Estabelece sequência temporal | Difícil de estabelecer |
| Custo e Tempo | Relativamente baixo e rápido | Alto e longo | Moderado e rápido |
| Utilidade para Doenças Raras | Limitada | Limitada | Ideal |
| Utilidade para Exposições Raras | Limitada | Ideal | Limitada |
| Principal Viés Potencial | Viés de seleção/prevalência | Perdas de seguimento (atrito) | Viés de seleção/memória |
Apesar de suas limitações, especialmente a incapacidade de estabelecer uma relação causal, os estudos transversais geram conhecimento de imenso valor para a saúde pública, conforme ilustrado na próxima seção.
4.0 Aplicações Práticas e Exemplos Comentados
A teoria metodológica ganha vida quando aplicada a problemas reais de saúde. Os estudos transversais são a base para inúmeras investigações que informam a prática clínica e as políticas de saúde. Esta seção demonstrará, com exemplos concretos e comentados, como este delineamento gera conhecimento valioso.
4.2 Exemplo 1: Prevalência de Hipertensão Arterial e Fatores Associados em uma Comunidade
Objetivo: Estimar a prevalência de hipertensão arterial (desfecho) e sua associação com o sedentarismo (exposição) em adultos de 40 a 69 anos de uma cidade, controlando pelo potencial efeito de confusão da idade.
Metodologia: Um estudo transversal foi conduzido com uma amostra aleatória de 1.000 adultos. A hipertensão foi definida como pressão arterial sistólica ≥ 140 mmHg ou diastólica ≥ 90 mmHg. O sedentarismo foi definido como a prática de menos de 150 minutos de atividade física moderada por semana.
Resultados Hipotéticos:
A tabela a seguir mostra a distribuição dos participantes segundo a exposição (sedentarismo) e o desfecho (hipertensão).
| Sedentarismo | Hipertenso | Não Hipertenso | Total |
| Sim | 240 | 360 | 600 |
| Não | 80 | 320 | 400 |
| Total | 320 | 680 | 1.000 |
Cálculos e Interpretação:
- Prevalência de Hipertensão no grupo Exposto (Sedentários):
- Prevalência = (Número de hipertensos sedentários) / (Total de sedentários)
- Prevalência = 240 / 600 = 0,40 ou 40%
- Prevalência de Hipertensão no grupo Não Exposto (Não Sedentários):
- Prevalência = (Número de hipertensos não sedentários) / (Total de não sedentários)
- Prevalência = 80 / 400 = 0,20 ou 20%
- Cálculo da Razão de Prevalência (RP):
- RP = (Prevalência nos expostos) / (Prevalência nos não expostos)
- RP = 0,40 / 0,20 = 2,0
Interpretação: A prevalência de hipertensão arterial entre os indivíduos sedentários é de 40%, enquanto entre os não sedentários é de 20%. A Razão de Prevalência de 2,0 significa que, nesta população, os indivíduos sedentários têm o dobro da prevalência de hipertensão em comparação com os não sedentários. Este achado, embora não causal, sugere uma forte associação e justifica a formulação de hipóteses e o planejamento de intervenções de promoção da atividade física.
Nota da Professora: Um erro crasso que observo com frequência é a interpretação de uma Razão de Prevalência (RP) como se fosse um Risco Relativo (RR). É tentador dizer que “sedentários têm o dobro do risco de desenvolver hipertensão”, mas isso é incorreto. Devido à medição simultânea da exposição e do desfecho, não podemos afirmar que o sedentarismo veio antes da hipertensão. Não podemos afirmar que o sedentarismo causa o dobro do risco de hipertensão, apenas que a prevalência é o dobro entre os sedentários neste momento. É perfeitamente plausível que a própria hipertensão (ou seus sintomas) leve ao sedentarismo. Essa ambiguidade temporal é a principal limitação causal do estudo transversal.
4.3 Exemplo 2: Avaliação da Qualidade de Vida em Pacientes com Doença Crônica
Objetivo: Avaliar o impacto do diabetes (exposição) na qualidade de vida (desfecho) de pacientes atendidos em um serviço de saúde.
Metodologia: Um estudo transversal foi realizado com 100 pacientes diabéticos e 100 controles não diabéticos, pareados por idade e sexo. A qualidade de vida foi mensurada utilizando o questionário padronizado SF-36, que gera escores de 0 (pior) a 100 (melhor) em diferentes domínios.
Resultados Hipotéticos (Domínio “Capacidade Funcional”):
| Grupo | N | Escore Médio de Capacidade Funcional (Desvio Padrão) |
| Pacientes com Diabetes | 100 | 65 (±15) |
| Controles sem Diabetes | 100 | 85 (±10) |
Comentários: Os resultados mostram que os pacientes com diabetes apresentaram, em média, um escore de capacidade funcional significativamente menor (65) do que o grupo controle (85). Este estudo transversal fornece um “retrato” do impacto da doença na vida dos pacientes em um dado momento. Essa informação é muito útil para o planejamento de ações de cuidado integral, que não visem apenas o controle glicêmico, mas também a melhoria da qualidade de vida, a reabilitação funcional e o suporte psicossocial.
Esses exemplos reforçam a utilidade prática dos estudos transversais. Contudo, sua condução, como a de qualquer pesquisa, deve ser sempre pautada por rigorosos princípios éticos.
5.0 Cuidados Éticos e Implicações
5.1 A Primazia da Ética na Pesquisa
A primazia dos princípios éticos é um pilar inegociável em qualquer pesquisa que envolva seres humanos. Independentemente do desenho do estudo, a dignidade, os direitos e o bem-estar dos participantes devem ser protegidos em todas as fases do processo de investigação. Os estudos transversais, embora geralmente classificados como de risco mínimo, não são exceção e exigem atenção a cuidados éticos fundamentais.
5.2 Princípios Fundamentais
- Consentimento Informado: Antes de qualquer coleta de dados, é imperativo obter o consentimento voluntário de cada participante. Isso significa que o pesquisador deve explicar de forma clara e acessível os objetivos do estudo, os procedimentos envolvidos, os potenciais riscos (mesmo que mínimos) e benefícios, e a garantia de que a participação é voluntária e pode ser encerrada a qualquer momento sem prejuízos. O processo geralmente é formalizado pela assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
- Confidencialidade e Anonimato: Os pesquisadores têm a obrigação de garantir que as informações individuais coletadas serão mantidas em sigilo absoluto. Os dados devem ser armazenados de forma segura, e os resultados da pesquisa devem ser sempre divulgados de forma agregada, sem a possibilidade de identificação dos participantes. Isso protege a privacidade e evita qualquer forma de estigmatização ou discriminação.
- Minimização de Riscos: Embora os estudos transversais raramente envolvam intervenções físicas, eles podem apresentar riscos psicossociais. É crucial minimizar qualquer constrangimento ou desconforto durante a coleta de dados, especialmente ao abordar temas sensíveis (ex: saúde mental, comportamento sexual, uso de substâncias). A equipe de pesquisa deve ser treinada para conduzir as entrevistas com sensibilidade e respeito.
- Retorno dos Resultados: Existe uma responsabilidade ética de compartilhar os resultados da pesquisa com a comunidade que participou do estudo e com os órgãos de saúde competentes. Esse retorno pode se dar por meio de relatórios, reuniões comunitárias ou publicações. A devolução dos achados à comunidade não apenas valoriza a contribuição dos participantes, mas também pode subsidiar ações locais de saúde e empoderar a população com conhecimento.
A atenção a estes princípios éticos é complementada pela necessidade de uma análise crítica sobre as possíveis ameaças à validade dos resultados, um aspecto essencial para garantir que as conclusões do estudo sejam não apenas éticas, mas também cientificamente robustas.
6.0 Discussão Crítica: Validade, Viés e Generalização
A publicação de um resultado de pesquisa não é o fim do processo científico; é o começo de uma análise crítica. A validade de um estudo determina o grau de confiança que podemos ter em suas conclusões e em sua aplicabilidade. Para interpretar corretamente os achados de um estudo transversal, é essencial compreender as principais ameaças à sua validade: os vieses e o fator de confundimento.
6.2 Validade Interna e Externa
- Validade Interna: Refere-se ao grau em que os resultados de um estudo são corretos para a amostra específica que foi estudada. Uma alta validade interna significa que a associação encontrada entre exposição e desfecho é real dentro daquele grupo, e não fruto de erros sistemáticos (vieses) ou da influência de terceiros fatores (confundimento).
- Validade Externa (Generalização): Refere-se ao grau em que os resultados do estudo podem ser aplicados ou generalizados para a população-alvo ou para outras populações. Uma alta validade externa depende de quão representativa a amostra do estudo é em relação à população da qual foi extraída.
6.3 Principais Vieses em Estudos Transversais
O viés (ou erro sistemático) é uma distorção dos resultados que leva a uma estimativa incorreta da associação entre exposição e desfecho.
- Viés de Seleção Ocorre quando a maneira de selecionar os participantes ou a recusa em participar leva a uma amostra que não é representativa da população-alvo. Um tipo clássico de viés de seleção em estudos transversais é o viés de prevalência-incidência (ou viés de Neyman). Como o estudo mede a prevalência, ele tende a incluir casos da doença que têm uma longa duração e a excluir aqueles que evoluíram rapidamente para a cura ou para o óbito. Se a exposição estiver relacionada à duração da doença (por exemplo, um fator de risco que leva a uma forma mais letal da doença), a associação observada entre exposição e prevalência da doença pode ser distorcida.
Nota da Professora: O viés de Neyman é particularmente problemático ao estudar a associação entre fatores de risco e doenças que têm desfechos fatais rápidos (como certos cânceres agressivos) ou curas rápidas (como algumas infecções agudas). A “fotografia” do estudo transversal irá, por sua natureza, sub-representar esses casos que saem rapidamente do “pool” de prevalentes. O resultado é que a amostra de casos pode ser enriquecida com indivíduos que têm uma forma mais crônica ou menos severa da doença, o que pode mascarar ou distorcer completamente a verdadeira associação entre a exposição e a incidência da doença.
- Viés de Aferição (ou Informação) Ocorre devido a erros na medição (aferição) da exposição ou do desfecho, levando a uma classificação incorreta dos indivíduos. Um exemplo comum é o viés de memória, onde indivíduos que têm a doença (casos) podem se lembrar de exposições passadas de forma diferente daqueles que não têm a doença (controles). Embora seja mais proeminente em estudos caso-controle, pode ocorrer em estudos transversais que dependem da recordação de informações.
6.4 Fator de Confundimento
Conforme já definido, o confundimento ocorre quando uma terceira variável está associada tanto à exposição de interesse quanto ao desfecho, distorcendo a associação real entre eles.
Um exemplo clássico ilustra bem o conceito: estudos iniciais observaram uma associação entre o consumo de café (exposição) e o infarto do miocárdio (desfecho). No entanto, o tabagismo (variável de confundimento) é associado tanto ao consumo de café (muitos fumantes também bebem café) quanto ao infarto. Ao não controlar o efeito do tabagismo, a associação observada era, na verdade, um reflexo da relação entre fumo e infarto.
Nos estudos transversais, as principais estratégias para controlar o confundimento ocorrem na fase de análise de dados, por meio de:
- Estratificação: Análise da associação dentro de subgrupos (estratos) da variável de confundimento (ex: analisar a associação café-infarto separadamente para fumantes e não fumantes).
- Modelagem Multivariada: Uso de modelos de regressão (como a regressão logística) para ajustar estatisticamente o efeito das variáveis de confundimento.
A identificação e a mitigação cuidadosa desses desafios metodológicos são cruciais para a interpretação correta dos achados e para a aplicação responsável do conhecimento gerado por estudos transversais na melhoria da saúde das populações.
7.0 Conclusão: O Papel Estratégico do Estudo Transversal na Pesquisa em Saúde
Concluímos, portanto, que o estudo transversal, apesar de sua aparente simplicidade metodológica, ocupa uma posição estratégica e insubstituível no arsenal da pesquisa em saúde. Sua principal limitação — a ambiguidade temporal que impede o estabelecimento de causalidade — é, paradoxalmente, a fonte de sua maior força: a agilidade, o custo relativamente baixo e a capacidade de fornecer um panorama rápido e abrangente da situação de saúde de uma população.
Essa “fotografia” populacional é a espinha dorsal da vigilância em saúde pública, permitindo o monitoramento de prevalências de doenças crônicas, fatores de risco e coberturas de serviços. É o ponto de partida essencial para a formulação de hipóteses etiológicas que alimentarão investigações mais complexas e onerosas, como estudos de coorte e caso-controle. Além disso, para gestores e planejadores, os dados de prevalência gerados por estudos transversais são a matéria-prima para a alocação racional de recursos, a priorização de problemas e o desenho de intervenções.
A interpretação correta de um estudo transversal exige do pesquisador e do leitor uma profunda compreensão de suas potencialidades e de suas fragilidades, especialmente no que tange aos vieses e fatores de confundimento. Dominar este delineamento não é apenas aprender uma técnica, mas sim compreender como uma simples fotografia, quando bem tirada e criticamente analisada, pode ter um impacto profundo e duradouro nas políticas e na saúde das populações.
8.0 Referências Bibliográficas
- Gordis L. Epidemiology. 5th ed. Philadelphia, PA: Elsevier Saunders; 2014.
- Rothman KJ, Greenland S, Lash TL. Modern Epidemiology. 3rd ed. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins; 2008.
- Schlesselman JJ. Case-control studies: design, conduct, analysis. New York: Oxford University Press; 1982.
- Paim JS, Almeida-Filho N. Saúde Coletiva: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014.
- MacMahon B, Pugh T. Epidemiology: Principles and methods. Boston: Little, Brown & Co.; 1970.

