1. Definição e Fundamentos Teóricos
1.1. Introdução aos Estudos Caso-Controle
O estudo caso-controle representa um dos desenhos de pesquisa mais estratégicos e eficientes no arsenal da epidemiologia. Trata-se de um desenho de pesquisa observacional e analítico, concebido primariamente para investigar as causas (etiologia) de doenças. Sua lógica fundamental é retrospectiva: parte-se do efeito (a doença) para investigar as possíveis causas (as exposições). Em sua essência, o estudo caso-controle identifica indivíduos que já desenvolveram a doença de interesse, denominados casos, e os compara a um grupo de indivíduos que não possuem a doença, os controles, com o objetivo de determinar se a frequência de exposição a um determinado fator de risco foi diferente entre os dois grupos.
O princípio fundamental deste método é a comparação. Se a exposição a um fator de risco estiver associada à doença, espera-se que a proporção de indivíduos expostos seja maior no grupo de casos do que no grupo de controles. Para compreender este princípio, é útil pensar no estudo caso-controle como uma versão mais eficiente de um estudo de coorte. Imagine uma grande população (uma “coorte imaginária” ou “população fonte”) que é acompanhada ao longo do tempo. Alguns indivíduos desenvolverão a doença (os casos) e a maioria não (os não-casos). Em vez de acompanhar toda a coorte e coletar dados de exposição de todos, o estudo caso-controle seleciona todos (ou uma amostra) dos casos que surgem e apenas uma amostra representativa dos não-casos (os controles). A exposição é então avaliada nesses dois grupos selecionados. A falha em selecionar controles que representem fidedignamente a base da coorte da qual os casos emergiram é o erro metodológico mais fundamental que pode invalidar as conclusões de um estudo caso-controle, pois a premissa da comparação é quebrada.
Este desenho de pesquisa, embora eficiente, possui uma rica história que consolidou sua metodologia e demonstrou seu valor inestimável para a saúde pública.
1.2. Contexto Histórico e Relevância
O desenvolvimento e a aceitação dos estudos caso-controle como uma ferramenta epidemiológica robusta foram impulsionados por investigações seminais que abordaram importantes questões de saúde pública no século XX. Entre os marcos mais significativos está o estudo de Doll & Hill (1952) sobre a associação entre o hábito de fumar e o carcinoma de pulmão. Diante da crescente incidência da doença, eles entrevistaram milhares de pacientes hospitalizados na Inglaterra, comparando os hábitos de tabagismo de pacientes com câncer de pulmão (casos) com os de pacientes com outras doenças (controles). A associação encontrada foi tão forte que se tornou uma evidência crucial na identificação do tabagismo como principal causa do câncer de pulmão.
Outro exemplo clássico que ilustra o poder deste método é o estudo de Herbst, Ulfeder et al. (1971). Os pesquisadores investigaram um raro surto de adenocarcinoma de células claras da vagina em mulheres jovens. Utilizando um desenho caso-controle, eles compararam a história gestacional das mães das jovens diagnosticadas com a doença (casos) com a das mães de um grupo de mulheres nascidas na mesma época e local, mas sem a doença (controles). A investigação revelou uma forte associação entre a ocorrência do câncer e a exposição intrauterina ao dietilbestrol (DES), um estrogênio sintético que era prescrito para prevenir abortos espontâneos.
Esses estudos históricos não apenas forneceram respostas para questões etiológicas urgentes, mas também demonstraram a relevância e a validade do desenho caso-controle, consolidando sua metodologia e estabelecendo-o como uma abordagem indispensável na pesquisa clínica e na vigilância em saúde. A seguir, detalharemos os componentes metodológicos que garantem o rigor e a validade deste tipo de estudo.
2. Características Metodológicas Essenciais
A validade de um estudo caso-controle depende criticamente do rigor metodológico empregado em seu desenho e execução. Por ser um estudo retrospectivo, ele é particularmente vulnerável a vieses, que são erros sistemáticos capazes de distorcer a estimativa da associação entre exposição e doença. Portanto, a atenção meticulosa a cada etapa do processo — desde a seleção de casos e controles até a análise dos dados — é fundamental para garantir que os resultados sejam confiáveis e interpretáveis.
2.1. Seleção de Casos
A primeira etapa de um estudo caso-controle é a identificação dos casos. Este processo requer uma definição de caso que seja clara, precisa e explícita, baseada em critérios diagnósticos bem estabelecidos (clínicos, laboratoriais, histopatológicos etc.). A ambiguidade na definição de caso pode levar à inclusão de indivíduos que não têm a doença, diluindo a associação, ou à exclusão de casos verdadeiros, reduzindo o poder estatístico do estudo.
As fontes para identificação de casos são variadas e incluem registros hospitalares, clínicas ambulatoriais, registros de base populacional (e.g., registros de câncer) e sistemas de vigilância epidemiológica.
Uma decisão crucial na seleção de casos é a escolha entre casos incidentes (novos casos da doença que surgem durante um período de tempo definido) e casos prevalentes (casos existentes da doença em um ponto específico no tempo). A preferência por casos incidentes decorre de uma questão fundamental: estamos interessados nos fatores que causam o desenvolvimento da doença (etiologia), não nos fatores que influenciam a duração da doença (prognóstico). O uso de casos prevalentes mistura inextricavelmente esses dois conjuntos de fatores, comprometendo a capacidade de fazer inferências etiológicas válidas. Por exemplo, se uma exposição aumenta o risco de uma doença fatal, mas também melhora a sobrevida, um estudo com casos prevalentes poderia subestimar ou até mesmo não detectar a associação.
2.2. Seleção de Controles
A seleção de controles é a etapa mais desafiadora e crítica no desenho de um estudo caso-controle. O princípio fundamental é que os controles devem ser representativos da população fonte que originou os casos. Em outras palavras, se os casos são uma amostra de todos os indivíduos com a doença naquela população, os controles devem ser uma amostra de todos os indivíduos sem a doença na mesma população. O objetivo da seleção de controles é estimar a prevalência da exposição na população fonte, que serve como a base de comparação para a prevalência da exposição observada nos casos. Uma seleção inadequada de controles é a principal fonte de viés de seleção neste tipo de estudo.
As fontes de controles variam, cada uma com suas vantagens e desvantagens, conforme resumido no quadro abaixo.
| Fonte de Controles | Vantagens e Desvantagens |
| Controles de Base Populacional | Vantagens: Alta representatividade da população fonte; menor probabilidade de viés de seleção.<br>Desvantagens: Custo elevado e logisticamente complexos; taxas de participação podem ser baixas; o viés de memória pode ser maior, pois os controles saudáveis podem ter menos motivação para recordar exposições passadas. |
| Controles Hospitalares | Vantagens: Facilmente acessíveis e identificáveis; mais prováveis de cooperar com a pesquisa; maior probabilidade de recordar exposições passadas de forma semelhante aos casos (são também pacientes).<br>Desvantagens: Podem não ser representativos da população fonte, pois são doentes. Se a doença do controle estiver associada (positiva ou negativamente) à exposição de interesse, o OR será enviesado. Por exemplo, usar pacientes com bronquite crônica como controles em um estudo sobre tabagismo e câncer de pulmão resultaria em um OR subestimado. |
| Controles Especiais (Amigos, vizinhos, familiares) | Vantagens: Podem ser similares aos casos em fatores sociodemográficos e de estilo de vida, o que ajuda a controlar a confusão; alta taxa de cooperação.<br>Desvantagens: Risco de superpareamento (overmatching), pois podem compartilhar as mesmas exposições que os casos, levando a uma subestimação da associação. |
Para aumentar a robustez do estudo e avaliar o potencial impacto do viés de seleção, alguns pesquisadores optam por utilizar múltiplos grupos de controle de fontes distintas (e.g., um grupo hospitalar e um grupo de base populacional). Se os resultados forem consistentes entre os diferentes grupos, a confiança na validade da associação aumenta.
2.3. Pareamento (Matching)
O pareamento (ou matching) é uma estratégia utilizada para controlar a influência de fatores de confusão já no desenho do estudo. Consiste em selecionar controles que sejam similares aos casos em relação a certas características que se sabe estarem associadas à doença e que se deseja controlar (e.g., idade, sexo, status socioeconômico).
Existem duas formas principais de pareamento:
- Pareamento Individual: Para cada caso, seleciona-se um ou mais controles com as mesmas características de pareamento. Por exemplo, para um caso do sexo masculino de 45 anos, busca-se um controle do sexo masculino na mesma faixa etária (e.g., 45 ± 2 anos).
- Pareamento por Grupo (ou por Frequência): A proporção de controles com uma determinada característica é idêntica à proporção de casos com essa mesma característica. Por exemplo, se 20% dos casos estão na faixa etária de 50-59 anos, os controles são selecionados de modo que 20% deles também pertençam a essa faixa etária.
Embora útil, o pareamento deve ser usado com cautela. O principal risco é o overmatching (superpareamento), que ocorre quando se pareia por uma variável que está na via causal entre a exposição e a doença ou que está fortemente correlacionada com a exposição. Um exemplo de superpareamento seria, em um estudo sobre o efeito do consumo de carne vermelha (exposição) na ocorrência de câncer de cólon (doença), parear os casos e controles por seus níveis de colesterol sérico. Como o colesterol pode ser um intermediário na via causal entre a dieta e a doença, forçar a semelhança entre casos e controles nesta variável pode mascarar a associação real da exposição com o desfecho. Além disso, a decisão de parear no desenho do estudo impõe a obrigação de utilizar uma análise pareada (e.g., regressão logística condicional) para que a associação seja estimada corretamente. Ignorar o pareamento na fase de análise pode introduzir viés e levar a estimativas incorretas.
2.4. Aferição da Exposição
Uma vez que casos e controles são selecionados, a próxima etapa é determinar seu status de exposição passado. As informações sobre a exposição podem ser obtidas por meio de diversos métodos, como entrevistas e questionários aplicados aos participantes, consultas a registros médicos ou ocupacionais, ou coleta e análise de amostras biológicas (e.g., sangue, urina) para medir biomarcadores de exposição.
O desenho caso-controle é particularmente vulnerável ao viés de informação, sendo o mais conhecido o viés de memória (recall bias). Este viés ocorre quando há uma diferença sistemática na capacidade de recordar exposições passadas entre casos e controles. Indivíduos que desenvolveram uma doença (casos) podem refletir mais sobre suas possíveis causas e, consequentemente, recordar e relatar exposições com maior precisão (ou de forma seletiva) do que indivíduos saudáveis (controles). Para minimizar este viés, é importante usar fontes de dados objetivas sempre que possível e treinar os entrevistadores para que a coleta de informações seja padronizada e “cega” (sem conhecimento do status de caso ou controle do participante).
A coleta de dados precisa e imparcial sobre a exposição é o que permite a análise subsequente da associação.
2.5. Análise Estatística
A principal medida de associação em um estudo caso-controle é o Odds Ratio (OR), também conhecido como Razão de Chances. O OR quantifica a força da associação entre a exposição e a doença, estimando a chance de um caso ter sido exposto em comparação com a chance de um controle ter sido exposto. Em um estudo não pareado, os dados são organizados em uma tabela de contingência 2×2.
Na tabela 2×2, ‘a’ representa os casos expostos, ‘b’ os controles expostos, ‘c’ os casos não expostos, e ‘d’ os controles não expostos. O OR compara a chance de exposição entre os casos (a/c) com a chance de exposição entre os controles (b/d), resultando na fórmula de produtos cruzados (ad/bc).
| Casos (Doentes) | Controles (Não Doentes) | |
| Expostos | a | b |
| Não Expostos | c | d |
A fórmula para o cálculo do Odds Ratio é a razão dos produtos cruzados:
OR = (a × d) / (b × c)
- Se OR = 1, não há associação entre a exposição e a doença.
- Se OR > 1, a exposição é um fator de risco para a doença.
- Se OR < 1, a exposição é um fator de proteção.
É importante notar que o OR é uma estimativa do Risco Relativo (RR), medida que só pode ser calculada diretamente em estudos de coorte. O OR se aproxima bem do RR sob a condição de doença rara, ou seja, quando a incidência da doença na população é baixa.
Quando o estudo utiliza pareamento, a análise deve levar isso em conta. Para dados pareados individualmente (1 caso para 1 controle), utiliza-se o teste de McNemar e a análise se concentra nos pares discordantes. Para análises mais complexas, especialmente para controlar múltiplos fatores de confusão, a regressão logística condicional é o método apropriado para dados pareados. Em estudos não pareados, a regressão logística incondicional ou a estratificação de Mantel-Haenszel são usadas para ajustar os efeitos de confundidores.
A metodologia fundamental aqui descrita pode ser adaptada, dando origem a diferentes tipos de estudos caso-controle, cada um com aplicações específicas.
3. Tipos de Estudos Caso-Controle
Embora o princípio fundamental do estudo caso-controle — comparar a exposição entre doentes e não doentes — permaneça constante, diferentes variações do desenho foram desenvolvidas para otimizar a eficiência, a validade e a aplicabilidade em contextos de pesquisa específicos. Essas variações aproveitam estruturas de dados existentes ou modificam a forma como os controles são selecionados para superar algumas das limitações do desenho tradicional.
3.1. Estudo Caso-Controle Aninhado em uma Coorte (Nested Case-Control)
O estudo caso-controle aninhado é conduzido dentro de uma coorte previamente definida e acompanhada. Nesse desenho, os casos são todos os indivíduos da coorte que desenvolveram a doença de interesse durante o seguimento. Para cada caso, um ou mais controles são selecionados aleatoriamente dentre os membros da coorte que estavam em risco (ou seja, ainda não haviam desenvolvido a doença) no momento em que o caso foi diagnosticado. Este desenho resolve, por definição, duas das maiores limitações do estudo caso-controle tradicional: estabelece inequivocamente a temporalidade (a exposição é medida antes do desfecho) e elimina completamente o viés de memória. Adicionalmente, é muito mais eficiente em termos de custo e esforço do que analisar os dados de toda a coorte, especialmente quando a análise da exposição requer testes laboratoriais caros ou demorados.
3.2. Estudo Caso-Coorte (Case-Cohort)
Assim como o desenho aninhado, o estudo caso-coorte também se origina de uma coorte definida. No entanto, sua abordagem para a seleção de controles é diferente. Os casos são, novamente, todos os indivíduos da coorte que desenvolvem a doença. Os controles, por sua vez, são selecionados a partir de uma amostra aleatória simples de toda a coorte inicial, retirada no início do estudo. Essa amostra é chamada de subcoorte. A principal vantagem do desenho caso-coorte reside em sua flexibilidade, pois a mesma subcoorte pode servir como grupo de comparação para diferentes conjuntos de casos (desfechos) que surjam na coorte ao longo do tempo, o que aumenta a eficiência da pesquisa.
3.3. Estudo Caso-Crossover (Case-Crossover)
O desenho caso-crossover é uma variação inovadora na qual cada caso serve como seu próprio controle. Este método é particularmente útil para avaliar o efeito de exposições transitórias e de curta duração sobre o risco de um evento agudo (e.g., o uso de um medicamento e o risco imediato de um infarto do miocárdio). A análise compara a exposição do indivíduo no período imediatamente anterior ao evento (o “período de caso”) com a exposição do mesmo indivíduo em um ou mais períodos de tempo anteriores (os “períodos de controle”). A principal elegância deste método é o controle perfeito de fatores de confusão que são estáveis no indivíduo ao longo do tempo (e.g., fatores genéticos, status socioeconômico crônico), pois cada indivíduo é seu próprio controle.
Embora estas variações metodológicas ofereçam soluções elegantes para problemas específicos, qual é o balanço geral de forças e fraquezas do desenho caso-controle? A seção seguinte aborda esta questão crítica.
4. Vantagens e Limitações
A escolha de um desenho de estudo em epidemiologia é sempre um exercício de equilíbrio. O pesquisador deve ponderar a questão de pesquisa, os recursos disponíveis, o tempo e as considerações éticas em relação às forças e fraquezas inerentes a cada método. O estudo caso-controle, com suas vantagens e limitações distintas, ocupa um nicho fundamental nesse processo decisório.
4.1. Vantagens
As principais vantagens que tornam o estudo caso-controle uma escolha frequente e valiosa na pesquisa epidemiológica incluem:
- Eficiência para doenças raras: Este é, talvez, o principal ponto forte do desenho. Para doenças com baixa incidência, um estudo de coorte exigiria o acompanhamento de um número massivo de pessoas por um longo tempo para acumular um número suficiente de casos. O estudo caso-controle supera essa dificuldade ao começar com os casos já identificados.
- Adequado para doenças com longo período de latência: Doenças que levam muitos anos ou décadas para se manifestar após a exposição (como muitos tipos de câncer) são difíceis de estudar com coortes devido ao seguimento prolongado necessário. O estudo caso-controle pode avaliar exposições que ocorreram muito tempo no passado sem a necessidade de um acompanhamento prospectivo.
- Rapidez e menor custo: Comparado a estudos de coorte, o estudo caso-controle é geralmente mais rápido de executar e economicamente mais viável, pois envolve um número menor de participantes e não requer um longo período de acompanhamento.
- Permite a investigação de múltiplos fatores de exposição: Uma vez que os grupos de casos e controles são definidos, é possível investigar e avaliar diversas exposições (hipóteses etiológicas) simultaneamente para a mesma doença.
4.2. Limitações
Apesar de suas vantagens, o estudo caso-controle possui limitações metodológicas importantes que devem ser cuidadosamente consideradas:
- Suscetibilidade a vieses: O desenho é particularmente vulnerável ao viés de seleção (se os controles não forem representativos da população que originou os casos) e ao viés de memória (se casos e controles recordarem exposições passadas de forma diferente).
- Dificuldade em estabelecer a relação temporal: Como a exposição e a doença são aferidas retrospectivamente e, em muitos casos, simultaneamente, pode ser difícil determinar com certeza se a exposição precedeu o desenvolvimento da doença, um critério essencial para a inferência causal.
- Impossibilidade de calcular diretamente a incidência: Por não partir de uma população em risco e acompanhá-la ao longo do tempo, este desenho não permite o cálculo direto de taxas de incidência, risco relativo ou risco atribuível. A força da associação é estimada pelo Odds Ratio.
- Ineficiente para exposições raras: Assim como um estudo de coorte é ineficiente para doenças raras, o estudo caso-controle não é um bom desenho para investigar o efeito de exposições pouco frequentes na população. A chance de encontrar indivíduos expostos entre os casos e, especialmente, entre os controles, seria muito pequena, exigindo um tamanho amostral muito grande para detectar uma associação.
A consciência dessas limitações reforça a necessidade de uma análise crítica dos resultados, um tema que aprofundaremos na seção seguinte.
5. Discussão Crítica: Validade, Vieses e Inferência Causal
A interpretação correta dos resultados de um estudo caso-controle exige mais do que o simples cálculo do Odds Ratio. Requer uma avaliação rigorosa de sua validade interna e externa, bem como uma análise cuidadosa das principais fontes de erro sistemático (vieses) e da influência de terceiros fatores (confusão). Apenas após essa análise crítica é possível começar a discutir a possibilidade de uma inferência causal.
5.1. Validade Interna e Externa
- Validade Interna: Refere-se ao grau em que os resultados do estudo estão corretos para a amostra estudada. Um estudo com alta validade interna é aquele em que a associação observada entre exposição e doença é real e não fruto de vieses, confusão ou acaso. Atingir uma alta validade interna é o objetivo primordial do desenho e da análise do estudo.
- Validade Externa (Generalização): Refere-se ao grau em que os resultados do estudo podem ser aplicados (generalizados) a outras populações além daquela especificamente estudada. A validade externa depende da representatividade da amostra do estudo em relação à população alvo e da consistência dos achados com outros estudos em diferentes contextos. Um estudo só pode ter validade externa se tiver validade interna.
5.2. Principais Vieses
Viés de Seleção Ocorre quando a maneira como os casos e/ou os controles são selecionados para o estudo está associada à exposição de interesse, levando a uma estimativa de associação distorcida. Um exemplo clássico é o uso de controles hospitalares. Suponha que estejamos investigando a associação entre consumo de álcool e câncer de laringe. Se selecionarmos como controles pacientes internados por doenças hepáticas (que também estão associadas ao consumo de álcool), a prevalência de exposição (álcool) no grupo controle será artificialmente alta. Isso fará com que a diferença na exposição entre casos e controles pareça menor do que realmente é. Neste caso, a superestimação da exposição no grupo controle levaria a um Odds Ratio enviesado em direção à nulidade (OR mais próximo de 1.0), subestimando a verdadeira associação entre o consumo de álcool e o câncer de laringe.
Viés de Informação (ou Aferição) Ocorre devido a erros sistemáticos na medição ou classificação da exposição ou do desfecho. O principal exemplo em estudos caso-controle é o Viés de Memória (Recall Bias). Como mencionado anteriormente, os casos (doentes) podem ter uma tendência a recordar exposições passadas de forma mais detalhada ou acurada que os controles (saudáveis), simplesmente por estarem buscando uma explicação para sua condição. Isso leva a uma superestimação da prevalência de exposição nos casos e, consequentemente, a um Odds Ratio inflado.
5.3. Fatores de Confusão
Um fator de confusão (ou confounder) é uma terceira variável que cria uma “mistura de efeitos”, distorcendo a associação real entre a exposição e a doença. Para que uma variável seja um confundidor, ela deve satisfazer três condições:
- Ser um fator de risco para a doença (independentemente da exposição).
- Estar associada à exposição na população fonte.
- Não ser um intermediário na via causal entre a exposição e a doença (e.g., o colesterol alto é um intermediário na via causal entre dieta gordurosa e doença cardíaca, não um confundidor).
As principais estratégias para controlar a confusão são no desenho do estudo (restrição, pareamento) e na análise dos dados (estratificação, modelagem estatística como a regressão logística).
5.4. Inferência Causal
Embora os estudos caso-controle sejam cruciais para gerar e testar hipóteses causais, um único estudo raramente consegue, sozinho, estabelecer uma relação de causalidade. A inferência causal é um processo de julgamento que considera o resultado do estudo em conjunto com outras evidências. Os critérios de causalidade, propostos por Austin Bradford Hill, fornecem um arcabouço para essa avaliação. Alguns dos principais critérios aplicáveis aos achados de um estudo caso-controle incluem:
- Força da Associação: Uma associação forte (indicada por um Odds Ratio de grande magnitude) é menos provável de ser devida apenas a vieses ou fatores de confusão não controlados.
- Relação Temporal: A exposição deve preceder a doença. Embora difícil de estabelecer em estudos caso-controle tradicionais, desenhos como o caso-controle aninhado garantem essa temporalidade.
- Relação Dose-Resposta: O risco da doença aumenta com o aumento do nível ou da duração da exposição (e.g., maior risco de câncer de pulmão quanto maior o número de cigarros fumados por dia).
É crucial compreender que estes não são critérios rígidos para “provar” causalidade, mas sim um arcabouço para a avaliação da totalidade da evidência. A força de um estudo caso-controle reside na sua capacidade de corroborar ou refutar hipóteses à luz destes princípios, contribuindo para um corpo de conhecimento mais amplo que, em conjunto, pode sustentar uma inferência causal.
6. Aspectos Éticos na Condução de Estudos Caso-Controle
A condução de qualquer pesquisa envolvendo seres humanos deve ser pautada por princípios éticos rigorosos, cujo objetivo primordial é proteger a dignidade, os direitos, a segurança e o bem-estar dos participantes. Em estudos caso-controle, que frequentemente lidam com informações sensíveis de saúde e retrospectivas, a atenção a esses princípios é fundamental.
Os principais aspectos éticos a serem considerados são:
- Consentimento Informado: Todos os participantes, tanto casos quanto controles, devem ser devidamente informados sobre os objetivos do estudo, os procedimentos envolvidos, os potenciais riscos e benefícios, a garantia de confidencialidade e o direito de recusar a participação ou de se retirar do estudo a qualquer momento, sem qualquer prejuízo. O consentimento deve ser obtido de forma voluntária e documentado.
- Confidencialidade e Privacidade: Os pesquisadores têm a obrigação de proteger a identidade e os dados pessoais dos participantes. Isso é especialmente crítico ao acessar informações de registros médicos. As informações devem ser anonimizadas ou codificadas o mais rápido possível, e a divulgação de resultados deve ser feita sempre de forma agregada.
- Minimização de Riscos: Embora os riscos físicos sejam geralmente mínimos em estudos caso-controle, os riscos psicossociais devem ser considerados. Responder a questionários sobre hábitos de vida ou condições de saúde pode gerar ansiedade ou constrangimento. Os pesquisadores devem elaborar seus instrumentos com sensibilidade.
- Submissão a Comitês de Ética em Pesquisa (CEP): Todo projeto de pesquisa envolvendo seres humanos deve ser submetido à avaliação e aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa antes de seu início. O CEP avalia o mérito científico do projeto, o balanço de riscos e benefícios e a adequação dos procedimentos para proteger os participantes, garantindo que o estudo esteja em conformidade com as diretrizes éticas nacionais e internacionais.
7. Referências Bibliográficas
- Gordis L. Epidemiologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Thieme Revinter; 2017.
- Almeida-Filho N, Barreto ML, organizadores. Epidemiologia & Saúde: Fundamentos, Métodos e Aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2012.
- Celentano DD, Szklo M. Gordis Epidemiology. 6ª ed. Philadelphia, PA: Elsevier; 2019.
- Rothman KJ, Greenland S, Lash TL. Modern Epidemiology. 3ª ed. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins; 2008.
- Woodward M. Epidemiology: Study Design and Data Analysis. 3ª ed. Boca Raton, FL: CRC Press; 2014.
- Meneghel SN, organizadora. Epidemiologia: exercícios indisciplinados. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2016.

